Relata as Sagradas Escrituras que, com a morte de Herodes, a Família de Nazaré sente-se livre para retornar para Israel. Contudo, o caminho é direcionado para a pequena cidade de Nazaré, pois o sucessor de Herodes ainda era uma ameaça à família. Assim, José, Maria e o Menino partem do Egito e se estabelecem em Nazaré: “Ele será chamado o Nazareno” [cf. Mt 2,23]. O relato bíblico explicita uma crise sociopolítica que não é coisa apenas do passado. Os tempos atuais também sofrem com as tantas crises que a humanidade enfrenta: na esfera econômica, política, religiosa, educacional e ecológica. “Investigar os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho” [GS, 1965] tem-se tornado cada vez mais desafiador.
Zygmunt Bauman [1925-2017], filósofo polonês afirmou que esta é a era da liquidez, da perda de referências. A chamada “modernidade líquida” representa uma era da fluidez, volatilidade, incerteza, insegurança, da efemeridade. Papa Francisco, em 2014 repreende-nos com a existência de uma “Terceira Guerra em Pedaços”. Pequenos conflitos que vão manchando nossa amizade, desfazendo nossas relações de amor e confiança e matando a fraternidade. Segundo o pontífice, sem esta fraternidade aberta, será impossível curar a humanidade. Por fim, um filósofo italiano, Luciano Floridi [1964] está nos questionando a respeito do lugar que o homem ocupa nesta Era da Hiperconectividade. Vivemos o momento do onlife. Não há mais como distinguir o online e o offline.
Missionário da Sagrada Família, o missionário belga, Pe. Júlio Maria De Lombaerde é enviado para as missões na Amazônia, no Brasil. Em 1912 ele chega no porto de Recife, em Pernambuco e no ano seguinte estabelece-se em Macapá. Um amante das artes e exímio escritor, o missionário escreveu diversos títulos sobre Nossa Senhora, Eucaristia e reflexões teológicas. Em 1941 ele lança “Os Ensinamentos de Nazaré”, uma obra que nos ajuda a encontrar “na vida oculta de Nazaré”, uma âncora firme para navegar neste mar de incertezas marcado pela liquidez, pela perda do lugar do humano, pela guerra que nos dilacera.
É preciso encontrar o Ideal em nossas vidas. “Nunca seremos grandes, nunca seremos elevados, nunca seremos santos, se não caminharmos para um ideal” [DE LOMBAERDE, 1941, p. 22]. O ideal é um caminho, o caminho é o Ideal. Onde encontrar, então, este Ideal? No poder, na riqueza, no dinheiro? Na autossatisfação? Na autodependência? A busca pelo Ideal faz-nos sair de nosso lugar e caminhar. O Ideal me põe a caminho e me leva a experimentar o encontro. No encontro a experimentar o outro, pois “a experiência humana também é social” [CHARDIN, T., 1980, p. 66]. Não vivemos sozinhos. Na Exortação Apostólica do Papa Francisco Evangelii Gaudium [2013] o pontífice afirma que “sair de si mesmo para se unir aos outros faz bem. Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo da imanência, e a humanidade perderá com cada opção egoísta que fizermos” [EG, n. 87].
Explicitado em quatro pilares, a Vida Oculta de Nazaré nos apresenta um caminho que nos ajuda a retomar o essencial para a vida. É no coração que deve residir nosso ideal. O ideal é o fundamento: o amor. E Jesus é amor. “Amar é dar-se todo a Deus, e a Deus só; depois, por ordem de Deus e do modo e na medida em que Deus quer, dar-se ao próximo. Amar é constantemente tender a unir a própria vontade à de Deus, para ser na terra, seu servo fiel e devotado...” [DE LOMBAERDE, 1941, p. 282]. Esse, “na medida em que Deus quer”, é o exercer da obediência em nome do ideal. E obediência é amor. “Obedecer é dar-se inteiramente. É dar o coração. Não é verdadeira, não é completa, não é expansiva a obediência que não vem do coração” [Ibid., p. 261].
Nazaré não é apenas um lugar geográfico, Nazaré passa a ser um “lugar existencial-social”. Tem a ver com o nosso “estado de espírito”, com o que “irradia do nosso coração”, e, no entanto, não se trata somente de sentimentos, mas da práxis cristã. O primeiro pilar é a Vida Oculta: “Nada diz o Evangelho de Nazaré, aí tudo é mistério e silêncio” [DE LOMBAERDE, 1941, p. 90]. Viver num mundo em que a imagem, o postar, o compartilhar, o posta, posta, filma, posta estão em alta, buscar o silêncio, a oração, uma vida mais “oculta” é necessário; o segundo pilar é a Palavra de Deus: rezar a Palavra, praticar a Leitura Orante da Bíblia. “Leiamos e saboreamos no mesmo espírito a Palavra de Deus” [Ibid., p. 1965]. Por que perdemos o hábito de ler? Por que tiramos de nossa rotina aqueles minutinhos que antes tínhamos para rezar e ler a Bíblia? Será que isto não nos faz falta? O terceiro pilar é Amor a Deus; “amor-próprio”; amor ao próximo: “Antes de iluminar os outros, é preciso acender em si o archote da virtude e da santidade. É que, antes de operar exteriormente, diante dos homens, é preciso operar dentro de si mesmo, diante de Deus” [Ibid., p. 104]. Por fim, o último pilar é a “Vida em Comum” – a fraternidade: para o Pe. Júlio Maria, santificar-se é levar o outro também à santidade. “Ser amável é possuir ao mesmo tempo um atrativo que atrai a si o coração dos outros, e um laço que prende este coração ao nosso” [Ibid., p. 182].
Portanto, é preciso “irradiar sobre os outros algo de nossa alma, que faça desabrochar o sorriso nos lábios, e dilatar-se o coração, assim como o sol faz desabrochar um botão de rosa. Ser amável é ter sempre nos lábios a palavra carinhosa que reanima, consola, fortifica, assim como a gota de orvalho reanima e colora a planta que murchava. Ser amável é guardar no seu exterior estas boas maneiras, essa naturalidade, esta paz do semblante, esta benevolência do olhar, que se transmite, que se comunica e deixa um certo contentamento a todos aqueles que de nós se avizinham e nos falam [DE LOMBAERDE, pp. 183-184].
Não tem como terminar este texto a não ser dando lugar ao próprio Servo de Deus Júlio Maria De Lombaerde que dizia: “O mundo tem sede de felicidade. Ele está faminto de felicidade. Ele morre por falta de felicidade. Ele procurou a felicidade em todo lugar. Em todo lugar onde ela não está. Ela bateu à porta da riqueza, à porta do prazer, à porta das grandezas, à porta da glória e até à porta do desespero. Terá ele batido à porta de Nazaré? É que a felicidade não é o bem-estar, não é a satisfação dos sentidos; a felicidade é alguma coisa a mais [DE LOMBAERDE, pp. 136-137]. E nós, onde procuramos a nossa felicidade?
Ir. Dione Afonso Rodrigue Pereira, SDN